O malandro e o otário (Na fila da padaria)

Fabio Pires
Revista in-Cômoda
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3 min readMay 3, 2023

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Dia de trabalho intenso começa cedo.
Seis da manhã me levanto, faço meu asseio, limpo a área dos gatos, encho seus potes de comida e vou a padaria comprar cinco pães franceses por dois reais.

Sei que pão engorda e não ajuda em nada na minha batalha contra a balança que cisma em sabotar meu peso.
Sempre para cima e o pão ajuda a entender a razão.

Minha irmã me sugere que passe a comer tapioca que segundo ela “tem baixo carboidrato e proteína”.
Coisa de gente magra.

A funcionária de sempre me cumprimenta, retribuo a gentileza e peço meus pães.

-Algo mais? Um queijinho?
-Hoje não, obrigado.

Maneira fina e elegante de dizer “Moça, hoje só tenho dois reais”.
Sigo para fila que é sempre lugar dos diálogos mais nonsense que são produzidos a esta hora da manhã.

Sério, as pessoas demoram a entender que a esta hora certas coisas sequer deveriam ser pensadas que dirá faladas em voz alta em público.
Mas eles falam. E sem nenhum pudor.

Assumo que na maior parte das vezes me seguro para não dar gargalhada ou mesmo me meter no assunto, mas ultimamente venho usando com frequência o meu olhar de desprezo número 43:
Aquele assim, meio de lado, já saindo, indo embora, como se dissesse:

-Sério que tu falou isso?”

Sim, eu sei que julgar as pessoas ainda sonolentas às seis da manhã na fila da padaria deve ser pecado (o 11º pecado talvez), mas é mais forte que eu, confesso.

A que ouvi hoje foi de lascar:

-Eu contribui com a vaquinha da Zambelli!

Confesso também que toda vez que ouço o nome dela me lembro do Omar Aziz citando Te amo, espanhola em resposta a uma das muitas ofensas que ela desfere.
Sou puro e não entendi a associação e por favor, não me expliquem.

A frase ecoou em meus ouvidos a ponto de me virar e começar a mexer os músculos faciais para armar o olhar que citei acima.
Sei que o franzir da testa é o primeiro movimento que faço, daí pra frente é ladeira abaixo.

“Ela paga o preço por dizer a verdade”, continuava o sujeito a falar já sem tanta convicção visto que outros também desferiram cada um seu olhar de desprezo que vinham de diversas direções da mirrada padaria.

-E como estamos em uma ditadura ela é processada…

Nesse momento o sujeito já sussurrava no ouvido da pobre pessoa que se predispôs a ouvir tanta asneira.
Alguém na parte de trás da fila solta com voz forte e seca:

-Ela foi viajar com o dinheiro da vaquinha! Tá na Coréia agora, otário.

Nada como a finesse matinal, não é mesmo?

O sujeito ainda estava juntando os cacos para alguma desculpa esfarrapada qualquer quando uma senhorinha fofinha que tinha esquecido de trocar a camisola de dormir e veio assim mesmo para padaria disse:

-Então, meu filho. Todo dia quando amanhece acordam um malandro e um otário e eles vão dar um jeito de se encontrar até o final do dia.
Algo me diz que você é o otário da vez.

E isso com voz fofa de senhorinha, vovozinha, cuti cuti.
Meu olhar de desprezo número 43 se desfez imediatamente sendo substituído por uma gargalhada daquelas que saem sem freio e sem educação.

E pelo visto criei um efeito cascata porque mais quatro pessoas riram descaradamente da frase da senhorinha e da cara de “sem saída” do sujeito.

Algo me diz que ele não volta mais a essa padaria.
E eu deveria ter sugerido a ele substituir o pão pela tapioca…

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Fabio Pires
Revista in-Cômoda

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados.