No hay banda!

Fabio Pires
5 min readOct 4, 2024

--

Nesta edição: A outra faceta do cineasta David Lynch, o que acontece quando um líder espiritual morre e as dificuldades da meditação.

David Lynch | Divulgação
David Lynch | Divulgação

Sempre que leio ou vejo alguma notícia sobre David Lynch me vem à cabeça uma cena do filme Cidade dos Sonhos, em que o personagem repete a frase “No hay banda!” balançando entre a ilusão e a realidade desafiando a percepção de que aquilo que vemos na tela pode não ser de fato o que vemos, e o que parece ser algo sólido pode desmoronar a qualquer momento.

Para quem descobriu David Lynch no início dos anos 90, pela TV aberta (!), assistindo a Twin Peaks, e passou a associar seu nome ao que chamo de “cinema sem freios”, em filmes como Império dos Sonhos, Veludo Azul e no já citado Cidade dos Sonhos, confesso que encontrar essa outra faceta dele, ligada à meditação transcendental, foi um choque inicial para mim. A ideia de um Lynch sereno e introspectivo simplesmente não se encaixava na imagem que eu tinha construído do cineasta ao longo dos anos.

Estou começando a desfazer essa impressão à medida que meu trabalho na Aquarius avança. Recentemente, tive a oportunidade de assistir Meditação, Criatividade e Paz, um documentário dirigido por ele mesmo, além dos filmes Na Raiz da Paz e On Meditation: Documentando a Jornada Interior, onde ele faz uma contribuição significativa, embora como participante. São obras que exploram a profundidade da meditação e seus impactos transformadores, e todas fazem parte do acervo da Aquarius.

Assistir a esses filmes me permitiu enxergar um novo lado de David Lynch — um lado menos frenético, mais introspectivo e centrado, que complementa sua abordagem criativa de uma maneira que eu não esperava. Essas produções destacam não apenas seu envolvimento com a meditação transcendental, mas também seu compromisso em compartilhar essa prática com o mundo, tornando a arte e a espiritualidade partes de sua trajetória.

Voltando ao filme em si, Sombras do Paraíso é um daqueles que podem ser chamados de “jornada cinematográfica”. É daquelas que nos carregam com seus personagens e seus dilemas. E um deles encabeça a sinopse desta obra: Quando um líder espiritual morre, como seus seguidores seguem adiante?

Sombras do Paraíso | Divulgação

Essa questão me fez refletir um bocado. Foi impossível não transportar minha imaginação para a passagem de outros líderes religiosos importantes ao longo da história, enquanto assistia às imagens iniciais do filme, onde os discípulos de Maharishi Mahesh Yogi se despediam de seu mestre nas águas sagradas do Rio Ganges. A conexão espiritual parecia transcender a própria morte, e ali, naquele ritual silencioso, havia algo de eternidade que me fez questionar o legado que um líder deixa e como isso continua a inspirar milhões ao redor do mundo. E que talvez, esse seja o verdadeiro sentido da palavra “legado”.

E, claro, como aprendiz na prática da meditação, me vi questionando: Como uma prática pessoal e silenciosa se transforma em um movimento global? E não estamos falando de qualquer movimento, mas de algo que cresceu de forma exponencial, envolvendo milhões de seguidores e instituições espalhadas pelo mundo. O que começou como uma busca interior tornou-se uma rede poderosa de transformação coletiva, algo que apenas práticas realmente profundas conseguem gerar.

Não sei para você, leitor, mas para mim, a meditação responde a uma necessidade diária de me recolher, de colocar meus pensamentos nos trilhos certos, especialmente quando o caos do cotidiano parece me empurrar para o lado oposto. E quem já experimentou a simples prática de parar por alguns minutos — mesmo que seja difícil driblar o barulho constante da obra no prédio, os miados insistentes dos gatos ou as intermináveis notificações do celular — sabe o quanto esses momentos de silêncio e introspecção são valiosos. É nesses breves instantes de “mim comigo mesmo” que consigo alinhar meus pensamentos, evitar que eles se “acotovelem” e gritem por atenção, e assim finalmente consigo encontrar alguma serenidade que se faz necessária em alguns momentos.

Meditação transcendental

No filme, a Fundação David Lynch é acompanhada em seu trabalho com a missão de tornar a meditação acessível a toda criança no mundo. Eles enxergam essa prática como um alicerce fundamental para criar uma geração menos ansiosa, mais equilibrada e capaz de dominar seus instintos e reações. A fundação acredita que o caminho para uma transformação verdadeira começa dentro de cada um de nós, e seu slogan resume perfeitamente essa filosofia: Mudanças começam de dentro.

Se começarmos a construir uma base sólida de paz interior, talvez possamos moldar um futuro em que as reações impulsivas deem lugar a respostas conscientes, e onde o caos do mundo externo não ofusque a tranquilidade que existe dentro de nós.

No decorrer do documentário, em alguns momentos nos deparamos com o termo “iluminação” como um despertar espiritual que só encontramos quando olhamos para dentro de nós mesmos, como a própria prática meditativa sugere e que ainda peno para alcançar. Outro ponto sugerido é o de banir qualquer negatividade do pensamento, o que assumo ser absurdamente complexo e difícil para mim. Mas há um outro que acredito ter aprendido que é o princípio de que tudo está em constante mudança. Tudo muda, tudo se desenvolve e não há nada que possa ser feito contra isso. É tipo: Aceita e vai. Muitas vezes estas mudanças se impõem, e não nos resta nada além de seguir adiante.

E assim o fizeram os seguidores de Maharishi mantendo sua chama acesa mesmo depois da passagem daquele que os “acendeu”. É clichê, eu sei, mas é mais um exemplo da vida pedindo passagem através da morte, afinal todo fim é imediatamente um recomeço.

Kyle MacLachlan e David Lynch

Em tempo: Confesso que, por um instante, cheguei a esperar que Kyle MacLachlan surgisse do nada, nas margens do Ganges reeditando a dupla de muitos filmes com David Lynch, mas, convenhamos, já seria pedir demais depois de termos Paul McCartney, Ringo Starr, Eddie Vedder e Sheryl Crow marcando presença.
Si, hay banda!

Sombras do Paraíso está disponível na Aquarius Tv.

Fabio Pires escreve histórias que não terminam, é escravo dos gatos da sua casa e trabalha na aquarius TV.

Gostou do texto?
Conheça outros através dos meus livros! Que Tal?

Confira os meus livros no site oficial da IS! (https://estanteis.minhalojanouol.com.br/)

Pelos Velhos Vales que Vago (2013 coletânea de poesias.)

Flores Marginais em um Jardim Sujo (88 crônicas retratando as nuances do lockdown na pandemia e SELECIONADO AO PRÊMIO JABUTI 2022)

Contribua com o trabalho do autor através do pix: 02629475794.

--

--

Fabio Pires

Escritor com dois livros lançados, Editor, Redator, Tradutor e escreve na Impérios Sagrados, no Projeto C.O.V.A e na Revista In-Cômoda.